No silêncio dos bairros de Cuiabá, Rondonópolis, Cáceres, Sinop e Lucas do Rio Verde, dramas se repetem. Mudam os nomes, os rostos, as ruas. Mas a dor, a reação e a tragédia seguem o mesmo roteiro. Na madrugada de 24 de junho de 2025, em Lucas do Rio Verde, Daniel Frasson — engenheiro agrônomo, pai, companheiro — matou a esposa, Gleici Keli Geraldo, a facadas enquanto ela dormia. A filha de sete anos, que tentou intervir, também foi esfaqueada e precisou ser transferida às pressas para a UTI em Cuiabá. Depois disso, ele tentou tirar a própria vida.
O que leva um homem, aparentemente funcional, a cometer um ato tão devastador? Orgulho ferido? Rejeição? Raiva? Dependência emocional ou química? Talvez tudo isso junto — costurado por um tipo de masculinidade que ensina que o homem precisa controlar tudo. Até a dor do abandono.
Casos assim não nascem do nada. Eles se constroem no silêncio. O mesmo silêncio que ronda bairros inteiros de Mato Grosso onde homens engolem a própria dor por medo de parecer fracos. Onde chorar é vergonha, pedir ajuda é sinal de fracasso e perder uma mulher é perder a própria identidade.
Quando esse silêncio se rompe, quase sempre vem em forma de explosão. Em Primavera do Leste, um homem alcoolizado agrediu a esposa enquanto gritava: “Eu não aceito ser corno.” Em Sinop, outro espancou a companheira e ateou fogo na casa onde moravam, tomado pela fúria e pelo álcool. Nenhum deles soube transformar o que sentia em palavras. Usaram o corpo, a força, o fogo — e quase sempre, a desculpa da bebida ou da droga como bengala emocional.
Mas a substância não é a origem. Ela só escancara o que a masculinidade tóxica ensinou: que homem de verdade não sofre. Se sofre, esconde. Se não aguenta, explode. E quando explode, é a mulher que sangra.
Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública, mais da metade dos feminicídios cometidos em Mato Grosso têm como autores homens sob efeito de álcool ou drogas. A maioria já havia apresentado sinais anteriores de violência. Mas quem escutou esses sinais? Quem acolheu esses homens antes que a raiva virasse faca?
Falar disso não é tirar o foco da vítima. É impedir que existam mais vítimas. Porque enquanto tratarmos apenas o que acontece depois, continuaremos enchendo as manchetes — e os cemitérios — com nomes de mulheres que só queriam o direito de ir embora em paz.
O que precisamos vai além da punição. Precisamos criar espaços onde os homens possam sentir — e não por isso perderem sua dignidade. Precisamos de CAPS com grupos terapêuticos voltados para homens em crise afetiva. Precisamos de campanhas que falem a língua da rua, do bar, do campo — não só a do consultório. Precisamos que o cuidado com a saúde mental do homem seja também política de segurança pública. Porque homem em sofrimento afetivo, quando não acolhido, pode virar risco para si mesmo e para quem está ao lado.
Se você é homem e sente que perdeu tudo ao fim de uma relação, entenda: você ainda tem a si mesmo. E isso já é muito. Procure ajuda. Existe vida depois do abandono — e ela pode ser mais leve, mais consciente, mais humana.
E se você conhece alguém prestes a explodir, não minimize. Ouça. Encaminhe. Abrace. Às vezes, uma escuta é o que separa o fim de uma relação do início de uma tragédia.
Enquanto isso não for política pública, que seja política do cuidado. Porque no silêncio dos bairros de Mato Grosso, há homens gritando por dentro — e mulheres morrendo por fora.
Nailton Reis é Psicólogo Clínico com especialização em Neuropsicologia Cognitiva Comportamental, Avaliação Psicológica e Psicologia do Trânsito em Cuiabá-MT
CRP 18/7767